sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Ser


    No reflexo metálico esboço um olhar de alguém que não se reconhece. Alguém que começou do meio sem a lembrança de um início. Cai sobre mim o brilho dourado do metal e dele sinto a paz, a vida, a idéia que o tempo deixou em tom azulado. Do azul não me lembro de nada além de um gosto amargo na boca e uma sensação de desconforto. O conforto me traz saudade. Saudade de quando confortável era apenas ser indivíduo. Quando a coletividade me servia e ela aquecia-me o peito.
     É possível não se ter um princípio ou ao menos um pretexto? De minha única metade conhecida, conheço apenas metade. Como alguém que é incompleto pode desejar algo completo? Restam-me as metades. Sufoca-me essa falta de pedaços. Preenchem-me com imaginação. Canso de ser utópico. Disseram-me que sou invenção. Minhas mãos de delicadeza vadia mal são marcadas por minhas digitais. Minhas digitais são fracas, mas existem. Existo.


Gabriel Lopes Sattelmayer.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

A casa


     É uma manhã fria acompanhada por uma fina garoa. Observo as gotas na janela, me levo à nostalgia. Bate-me uma saudade daquela antiga casa. Aquela que uma vez foi sonho, outra vez realidade, mas a mesma realidade tornou-a sonho novamente. A angústia de quinta-feira me sufoca. A semana toda que passou parece debruçar em meus ombros. Mas a saudade é grande, maior do que qualquer coisa. Certo dia passei em frente à casa. A sacada de madeira estava pintada. Tenho lembranças boas dessa sacada. Lá, observávamos, fazíamos planos, contemplávamos o sol, a noite, o frio, a chuva... Como eu gostava daquela sacada! Mas em sua forma original. Com sua cor única de madeira tratada.
     O céu escurece, resolvo sair logo de casa. Apanho uma blusa, um cachecol e saio às pressas. Sinto algo apertar meu pulso. Minhas pulseiras me apertam. Minhas marcas. Por que elas ainda estão comigo? Faço inúmeras tentativas de arrancá-las. Perda de tempo! Fazem parte do meu pulso.
     Incomodo-me tanto com as pulseiras que nem me dou conta de já estar à frente da porta da velha casa. Como que por anestesia a dor no pulso passa. Olho para porta da casa, sinto-a com a ponta de meus dedos e logo sou tomado pela dúvida: será que as chaves ainda são as mesmas? Deslizo minhas mãos pelos bolsos dando leves batidas até ouvir o eco metálico. Meu coração está acelerado, a curiosidade me corrói. A chave gira, a porta abre. Empurro-a lentamente e me espanto. A casa está do jeito de antes. Apenas as cortinas estão com tons mais escuros e há flores na mesa da sala. Certamente alguém ocupa a casa, pensei. Passo pela sala, pela cozinha, pela copa e vou em direção ao quarto. O nosso quarto. Giro a chave e a porta destranca. Empurro, mas dessa vez ela não se move. Tento mais uma vez e ela não se mexe. Dou alguns passos pra trás. Esbarro em uma mesinha com um amontoado de papéis. Meus textos que abandonei naquela noite em que achei que nada de escrito seria válido.
     Nesse momento sou tristeza. De forma imperceptível, uma lágrima põe-se a correr pela face do meu rosto e só se arrisca a se tornar perceptível em um discreto salto a fim de trocar de faces. Da minha para a do papel. Ouço um ruído na porta da sala e corro para averiguar. Era ela! Linda! Levava consigo várias sacolas de compras. Sem o menor espanto ela dirige-se a mim e diz:
     - Oi.
     - Oi. – respondo com ar de espanto – Não esperava encontrá-la aqui.
     - É a minha casa. – sorri e caminha até a copa para abandonar as sacolas.
     Ao olhar para a parede, reparo o nosso antigo relógio que funcionava de hora em hora, mas somente nas repetidas.
     - Desligou o relógio?
     - Não... A bateria dele não carrega mais. Acho que o carregador quebrou.
     - Essas fotos... – olhando pra alguns retratos dela espalhados pela superfície do armarinho – Lembrei que preciso pegar a minha máquina fotográfica, recuperá-la.
     - Ela é sua paixão, não é mesmo? – sorri – Está no mesmo lugar que você deixou.
     Abro a gaveta de baixo do armarinho. Lá está ela. Intacta. Rodeada por tentativas de melodia. A máquina funciona perfeitamente e ainda contêm na memória as fotos daquele tempo.
     - Se importa se eu tirar a ultima foto?
     - Eu não te negaria coisa assim.
     Bato a foto. Pego um pedaço de papel das tantas melodias inacabadas. Retiro uma caneta do bolso e escrevo uma palavra. Dobro o papel e fecho-o em minha mão.
     - A porta do quarto não abre mais?
     - Abre sim, mas é necessária força
     - Força? Por que é necessária força? As forças... Forçam. São forçadas.
     - Não sou eu quem tem a resposta para essa pergunta.
     Permaneço em silêncio alguns instantes. Ela se dirige à cozinha e começa a preparar o café da manhã como nas manhãs daqueles dias frios. Sinto uma enorme vontade de me sentar à mesa e me envolver naquelas saudosas conversas que desaguavam em silêncios confortantes acompanhados por olhares de leitura d’alma. Sua expressão é receptiva, como se tivesse também esse desejo. Mas não sou mais deste lugar.
     - Foi bom estar aqui novamente – digo com a voz rouca de um nó na garganta. – Estou indo.
     Ela se cala por alguns instantes. Caminho lentamente até a porta da sala. Deixo em cima da mesa, do lado do vaso de flores, o meu molho de chaves e o bilhete. Ela me acompanha silenciosamente. Levo a mão à maçaneta e abro a porta devagar.
     - Você está linda.
     Ela sorri e depois de uma pausa, diz: - Te comprei um sonho.
     - É... Um sonho.
     Suspiro. Sorrio. Saio.
     Volto a ser saudade.


*Bilhete: Amortecer*


                                                                                                                           Gabriel Lopes Sattelmayer.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

M_

     Das múltiplas sensações que me rodeiam, a mais marcante e significativa delas é a incompreensão. Dos vários caminhos a serem tomados, seguiu o mais escuro. As nossas fronteiras marcadas por paredes de cetim, hoje são da solidez do concreto. O contágio dos risos e sorrisos, hoje, são lembranças. E todo aquele gelo do dia seguinte, hoje, insiste em congelar a poesia. Aquela mesma poesia que no passado aquecia, revitalizava, recarregava... O nosso carregador.
     A simplicidade, nossa companheira, não sei se por cansaço de ser simples ou por coisa do tipo, insiste em vir a ser complexidade. Mas mal sabe ela que as coisas complexas não são as mais interessantes. A complexidade é maçante, corrosiva, desgastante. Porém tenho esperanças... Talvez um dia ela compreenda.
    Esse gelo e complexidade, em mim, resultaram na pacificação de minha intensidade que, hoje, representam meu silêncio. E o calor? Esse é dos conhaques, cobertas, fogueiras. Na nossa rua, que hoje mais parece uma avenida das mais movimentadas, eu deixo escrito a giz de cera o meu telefone no encosto daquele velho banco que freqüentei naquele tempo.
     Contudo, meu desejo é único: que a escuridão do caminho não te barre além dos olhos, os ouvidos e a boca. Acredite... Há quem se importe com isso.
           
                                                                                                                           Gabriel Lopes Sattelmayer.