- Pode me dar um trago desse cigarro?
- Pode, mas está no fim...
- Não tem importância. Aceito qualquer coisa!
- Quer um inteiro?
- Mesmo? Sério que você me daria um inteiro?
- Claro...
- Meu deus! Muito obrigado! Que bom que você se importa comigo, cara!
As pessoas me veem como retardado. Quando a gente bebe, cara, você vira um
retardado!
- Não precisa agradecer, não fiz muito.
- Não, cara... Obrigado! De verdade! As pessoas até evitam falar
comigo. Elas me acham um retardado. E eu sou um retardado, cara! E sabe o que
eu queria de verdade, cara? Um prato de comida! Cara... Você nem imagina quão
difícil é conseguir um prato de comida.
- Conheço alguns restaurantes que dão o que sobra da comida do dia pra
quem pede.
- Os restaurantes não nos ajudam, cara! Ajudam pessoas como você, mas
pra nós cara... Não há comida. Pros porcos sim, mas pra nós não.
- Hmm...
- Você não precisa acreditar em mim.
Mas eu sei o que estou dizendo.
- Eu acredito, nunca pedi comida em restaurante pra saber... O que eu
sei é de ouvido.
- E o pior cara, é que se você quiser beber... Quer beber, cara? Quer
se drogar? Quer o que? A bebida mais cara do mundo? Essas sempre têm! Quer cheirar
cara? Quer usar crack? Tudo isso tem de sobra. Mas comida, cara... Isso ninguém
te dá. Você sabe o que é perder o direito de comer cara? Eu não estou
aguentando nem ficar em pé de tão bêbado que eu estou, cara. E sabe que eu
queria? Um prato de arroz! Arroz, cara... Puro mesmo. Eu só quero me alimentar.
Se você jogar a comida no chão, cara... Eu como! Sabe por quê? Porque foda-se, cara! Não importa como você
chama a comida. Chama de lavagem? É lavagem que você quer me dar? Eu como,
cara. Foda-se! Não é a maneira que você chama a comida que importa, cara. O que
importa é o alimento.
- Mas você tem que se cuidar, cara... Pare de beber, nem que seja por
um tempo só... Pode desenvolver uma cirrose... Perdi um amigo assim, já...
- Não é parar de beber, cara... Todo mundo tem direito de beber, de
comer e de dormir, cara. Eu perdi o direito de comer e nem consigo mais dormir.
Eu estou me tornando um zumbi, cara. E nem eu estou me aguentando. Eu estou com
fome, cara! Se você quiser fazer algo por mim, cara... Dê-me uma marmita, cara!
Independente da hora. Pode ser de manhã, de tarde, de noite! Se tivesse aqui,
Cara... Eu comia agora mesmo e feliz! Não preciso de nada, cara... Não preciso
de talheres, não preciso de prato. Eu como com a mão, cara. Essas necessidades,
essas coisas pequenas já estão mortas em mim a muito tempo. Foda-se!
- Eu não sei o que te dizer, cara.
- Eu não estou querendo que você me diga nada, só quero que alguém me
escute! Não quero ser visto como um retardado cara. As pessoas só me dão bebida e não importa o
valor da bebida, cara! Agora comida, nem um prato de arroz eu consigo, cara! Eu
tenho cara de bêbado? Lógico né? HAHAHAHAHAHAHAHA
- Eu preciso ir...
- Nossa, cara! Desculpa! Nossa! Desculpa! Por favor, me desculpe! Eu
estou sendo chato, não é? Eu estou te atormentando, cara!
- Não há o que te desculpar. Não há culpa. Você não me incomoda, pelo
contrário. Eu conversei contigo, te ouvi. Mas agora chegou a hora de ir.
- Nossa, obrigado mesmo! E me
desculpe, de verdade!
- Imagine...
Gabriel Lopes Sattelmayer