quinta-feira, 14 de junho de 2012

Pobre Margareta



     Margareta é moça simples. Não abre largos sorrisos ou faz questão de muita sala. Margareta é pessoa prática! Executa as funções básicas como ninguém. Cozinha como ninguém, lava como ninguém, passa, trepa como ninguém. Margareta é louca por sexo. Deita-se com qualquer um, não tem muitos critérios. Margareta é daquelas que trepa mas não geme. Não sente nada. Na rua, Margareta é chamada de vadia, prostituta. Mas não é seu corpo que ela rifa. Margareta rifa sua alma... Rifa sua alma a cada encontro. Uma alma que nem ela própria sabe que existe.
    Margareta é dançarina. Bailarina desde os tempos de menina. Seu corpo e leve e sem graça como uma pluma, mas seus movimentos pausariam a respiração de um Teatro Municipal. Margareta não sente nada. Nem mesmo a sua arte. Margareta não chora... Ou pelo menos não chorava.
      Hoje é noite especial. Baile de fim de ano. Mas Margareta não sai de casa. Pega uma única vela e coloca no centro da sala. Fecha o vidro da janela e desprende a cortina. Caminha até o rádio e escolhe alguns CD’s. A rua está movimentada do lado de fora. Bêbados caminham de branco caindo e mijando em todas as ruas. Pessoas riem e cachorros latem. É quase meia noite. A música começa lenta. Margareta se prepara para iniciar a coreografia. A cidade se cala por alguns instantes e retorna em uma única voz: Dez! Nove! Oito! Sete! Seis! Cinco! Quatro! Três! Dois! Um! VIVA! Os fogos explodem. A música acelera. O reflexo dos fogos na sala escura em conjunto com os violinos da música e o eco das vozes gritando “viva” embalaram Margareta. Pela primeira vez Margareta se envolve. Luzes, explosões, violinos, gritos, vozes, música, dança, luzes, explosões, violinos, gritos, vozes, música, dança e tudo acaba em um grande estrondo do ultimo fogo de artifício que pareceu ser ensaiado com a música. Margareta cai. Pela janela ela ainda vê o resto das faíscas da ultima explosão. Margareta chora. Margareta ama. Margareta vive. Pobre Margareta.



Gabriel Lopes Sattelmayer

sábado, 2 de junho de 2012

Mais de quatro mil letras


     Saí de casa para ver a rua movimentada. Carros, motos faziam muito barulho. Meu ouvido doía. Olhei para frente de minha casa. Ainda estava com aquela cor cinza patética! Mas ainda conservava o mesmo ar pseudo-alegre de casas com cortininha nas janelas e rosa dos ventos no telhado. Olhei para a calçada e só vi pessoas perdidas com olhares vazios. Resolvi entrar. O eco da porta percorreu a casa e eu pude sentir o estrondo do fechamento em meu peito. A maior parte dos incômodos da casa estavam vazios. Quartos e porões trancados. O tapete da sala virou um tapete de papel. Papéis amassados e manchados à tinta. Tinteiros derramados e fotos partidas. O lixo transbordava de tentativas de melodias. Uma lágrima escorreu pelo meu rosto. Por um minuto me vi na casa dela...Mas me senti estranho...não era tão aconchegante quanto antes. A nostalgia se transformou em desespero.
      Acordei caído na porta do quarto. Taças de vinho sujas estavam espalhadas pelo corredor. Ressaca maldita! Percorreu um gosto de morte pela minha boca. Fui ao banheiro e vi meu rosto pálido no espelho. Minha boca estava ressecada e manchada de vinho. Meu cabelo eu já não via mais. Arranquei minha roupa e liguei o chuveiro. Sentei no chão a fim de sentir a água me cobrindo. Cada gota d’água me fazia transpirar um líquido ácido e quente. O resto das lágrimas que haviam persistido agora eram independentes e abandonaram suas casas. Casas que eu nem conhecia mais.
    Saí do banho, apanhei uma roupa qualquer no Box e vesti às pressas. Decidi procurar o molho de chaves. Percorri meus esconderijos e passagens secretas à procura dele.  Passando pelo corre-dor do meu quarto, esbarrei em minha velha mochila que eu havia pendurado na parede. Ouvi então o velho eco metálico. Apanhei as chaves com pressa e me atrevi a destrancar a porta do quarto. Abri e vi a escrivaninha corroída por cupins. Fotografias embolorando nas paredes e roupas espalhadas pelo chão. A cama tinha se conservado no tempo com as mesmas cores e cheiros daquela noite. Lentamente caminhei até a parede e começei a retirar as fotografias uma a uma. Empurrei a escrivaninha para fora do quarto e ela quase se desmontou. Retirei as roupas do chão e joguei todas em um grande saco. Troquei a roupa de cama e abri a janela do quarto. Guardei as fotos dentro da escrivaninha e arrastei-a até a rua. As roupas ficariam de molho. Quarentena. Cuidadosamente retirei o mofo das paredes com água sanitária e devolvi ao lugar os meus quadros do Doors e da Janis. Varri o chão com convicção. Não queria mais nenhuma poeira lá. Escancarei a porta do quarto.
     Caminhei com todo o lixo nas mãos até o porão e o arremessei em um grande latão. Retirei do porão o que restou da velha mobília. Encontrei lá minha câmera fotográfica coberta por poeira. Procurei, por curiosidade, as fotos daqueles dias. Estavam todas lá, mas, em um surto passageiro, apaguei todas. O porão parecia diminuir de tamanho. Senti-me sem ar, sufocado. Havia um bolo esfriando em cima da mesa com um bilhete de felicitações de um antigo aniversário. Provei um pedaço do bolo gelado e engoli a seco. Sorri. Retirei o bolo de cima da mesa e levei até a cozinha...
     O cuco estava quebrado, não ligava mais. Carregador? Acho que não ficou comigo. Mas, sei lá... Esse relógio parado no tempo tinha um ar muito melancólico. Arranquei os ponteiros do relógio e pendurei o cuco como adorno na sala. Percebi meu cachorro triste deitado em sua casinha de papel. Olhou-me com ar de sofrimento. Caminhei até a porta da sala para respirar um pouco de ar puro. Senti meu cachorro empurrar minhas pernas contra o batente da porta. Ele caminhou sem olhar para trás em direção à rua. Tentei chama-lo de volta, mas ele não me atendeu. Pensei em ir atrás, mas... Travei. Não me mexi. Fui até a cozinha e me surpreendi. O bolo estava repleto de formigas vermelhas. Lindas! Corroíam como ácido o único vestígio doce daquele tempo. Esperei o banquete terminar e joguei a bandeja no lixo junto com as formigas. Sentei no chão, peguei meu caderno e começei a escrever. Abre aspas: Saio de casa e vejo a rua movimentada...
     Mais de quatro mil letras. Nenhuma palavra.

Gabriel Lopes Sattelmayer