terça-feira, 27 de setembro de 2011

A vila


   Com uma expressão de cansaço andava o rapaz pelas ruas da cidadezinha carregando sua enorme mochila preta carregada de livros e cadernos que davam violentos saltos no interior da mesma acompanhando a variação dos passos. Seus passos eram marcados por um contínuo som metálico oriundo de um molho de chaves que, outrora, havia sido pendurado clandestinamente em sua mochila. O som ecoava em sua cabeça de tal maneira que o hipnotizava. Projetava a imagem de sorrisos, de olhares, da sacada, do café, da TV, do trem, do sol, das árvores, da aventura. “Escolha o caminho, aventureiro!” – gritou e começou a rir. O cansaço e a fome doíam. Foi nesse momento que ele avistou ao longe uma padaria que se localizava na esquina de uma rua larga. Na vitrine averiguou o que tinha para comer. “Temos somente pães de queijo e casadinhos, senhor”- disse o atendente. “Eu sei, é o cardápio comum de padarias de esquina”- disse sorrindo e saiu. O atendente haveria de dormir sem entender o que ele queria dizer.
     O som da chave o acompanhava aonde quer que ele fosse. Pensou várias vezes em tirá-la dali, mas não tinha coragem. Ele se perguntava a cada passo o porquê daquela chave estar ali. Pensou em voltar para devolver, mas já tinha andado demais. Não agüentava dar mais nem um passo. Foi nesse momento que um banco de madeira surgiu a sua frente. Pensou ser uma miragem e quase chorou de alegria quando viu que era real. Deitou no banco, usou sua mochila de travesseiro e ficou olhando o céu. Tentou dormir, mas não tinha sono. Levantou e resolveu ficar sentado. “Caralho!... Como não reparei nisso antes.”. Havia uma enorme torre com um relógio que lembrava aquela de Londres bem ao seu lado. Nesse mesmo instante lembrou-se do velho louco. “Eu sou nuvem passageira. Que com o vento se vai. Eu sou como um cristal bonito. Que se quebra quando cai.” – repetia o que o velho louco sempre lhe dizia. “Sábios loucos”. Apanhou sua mochila e continuou a andar. Não suportava mais o barulho das chaves. Arrancou-as da mochila e guardou-as numa caixinha de madeira que havia ganhado de presente. Subiu em um muro e avistou ao longe uma enorme árvore branca com raízes imensas. Desceu do muro e resolveu caminhar até ela. Era enorme e imponente. Branca da raiz às folhas. “Um belo lugar! Que tal?”- disse enquanto colocava a caixinha de madeira no pé da árvore. Com um enorme sorriso estampado no rosto, resolveu voltar para a cidadezinha por um caminho novo. Uma rua completamente movimentada. Havia barracas, tendas, crianças, jovens, adultos, velhos, carros, bicicletas, uma bagunça! Ele andava sem rumo, atordoado pelo barulho e pelo o número de pessoas. De repente ele sente uma batida em seu braço direto. Ele olha rapidamente para tomar ciência do ocorrido e se depara com uma linda moça de vestidinho florido e cabelo Chanel protegido por um pequeno chapéu marrom. Os olhos da moça leram sua alma. A situação embaraçou-lhe a mente. Aquele olhar dizia-lhe tanta coisa! Saiu correndo e esbarrando em todos. Só não reparou que do bolso onde havia a caixa de madeira, havia caído seu diário.


Gabriel Lopes Sattlemayer.

sábado, 24 de setembro de 2011

Pólos


     E ele que não se manifestava, moldado à talha pela descrença, se surpreendeu ao ver que aquela criança que, até então só se empenhava em causar desordem na casa, passara a se preocupar em desobstruir os corredores e os quartos após as tardes de peripécia. Observou que aquela criança criava naturalmente um ar de maturidade. Não aquela maturidade presa às normas e os bons costumes que seguem o fluxo dos seus antecessores, mas sim uma preocupação, um cuidado com os demais que, por um instante de desatenção, poderiam tropeçar em seus brinquedos machucando a si mesmos e destruindo algum brinquedo que pudesse ser de sua preferência, resultado na perda da graça de suas empresas fantasiosas em seus mundos imaginários. É... Talvez a preocupação daquela criança não fosse só o bem-estar dos outros, mas uma garantia de seu próprio bem.
     Pensava assim o velho homem até o momento em que, vendo a sua dificuldade de se locomover pela casa, a criança abandonou seu mundo fantástico para levá-lo para passear no jardim em sua cadeira de rodas. “Eu lhe incomodo, Sr.?”- disse o garoto. “De certa forma.”-disse o homem. Sem compreender muito bem a resposta inesperada perguntou: “Causo-lhe algum mal, Sr.?”. O velho homem sorriu e disse: “De forma alguma.”. E quando o menino perguntou sobre o motivo do incômodo, o homem disse em seguida: “A tua forma. Tu és um pirralho de merda”. O garoto não se agüentou e abriu uma estrondosa gargalhada que ecoou em toda a vizinhança. “Você é um velho rabugento! Rabugento no jeito de se vestir, rabugento no jeito de falar, rabugento no jeito de andar... R-A-B-U-G-E-N-T-O” – disse o garoto andando em círculos em volta da cadeira. “E tu, um pirralho de merda!”- murmurou o velho homem. Os dois se calaram e o silêncio reinou por toda tarde. Ambos se observavam e se reconheciam um no outro. Os olhos caídos, o cabelo encaracolado, a maneira com que coçavam a cabeça, os desvios de atenção, o ar pensativo, o amor e a paixão por seus mundos. No princípio do fim da tarde o menino arriscou quebrar o silêncio. “Você não aceita que somos iguais, não é mesmo?”. “Somos os mesmos, mas nossos mundos divergem”- disse o homem com ar pensativo. Os raios do sol na face do homem restabeleceram um pouco a sua juventude. O vento que ecoava na copa das árvores esvoaçou o cabelo de ambos. “Você é um homem rabugento.” – disse o garoto sorrindo. “Você cresceu... Mas continua um merda.”. Voltaram para a casa.


Gabriel Lopes Sattelmayer.
              

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Impostura


    O controle de agir de maneira coerente a fim de seguir ou não a razão não é nada mais que limitação, porém, se policiar para não se limitar também é uma limitação. Ser sensato é dar ouvidos aos precedentes, mas qual a vantagem de ser sensato quando a sensatez ceifa-lhe a espontaneidade? Viver com medo é o mesmo que não viver.
     A vida foi feita para ser marcada e para nos deixar a sua marca. As marcas são metade. Metade lágrima, metade sorriso. Mesmo as metades não se limitam em ser inteiramente uma só razão.
     Com bons olhos são vistos aqueles que observam analiticamente o seu cerco. Mas de que serve a análise se não para criar “pseudo-cascas”? Qual a razão de desenvolver defesas em um mundo onde a maioria dos tiros ruma diretamente aos pés?
     A melancolia é minha parceira e a contradição, meu cotidiano. Minha curiosidade é: como é viver de peito aberto? Não sei se por tédio ou teimosia, faço inúmeras tentativas de resgatar o que eu mesmo quis tirar de mim. O mais irônico é clamar pela ressurreição da simplicidade de uma criança. A mesma simplicidade amaldiçoada pela adolescência, onde tudo parecia estar errado. Quão idiotas somos nós! Melhor dizendo... Quão idiota sou eu! Está tudo do avesso!


Gabriel Lopes Sattelmayer

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Exclamação


   Vivendo uma tarde de sexta-feira, estava ele deitado em sua cama sobre o lençol recém comprado estampado de folhas secas, se alimentando do aroma de café que saía da caneca esquecida à beira do criado-mudo e tentando regurgitar todo aquele sentimento repaginado, reescrito e revigorado nas páginas amareladas de seu caderno.
     Do lado de fora, o dia presenteava o garoto enviando para dentro de seu quarto a imagem alaranjada de um início de pôr-do-sol. Era mais uma tarde sob o céu de São Paulo. Mais uma tarde na periferia de seu ser. Foi nesse momento que o garoto, por impulso, arremessou seu caderno contra a parede e correu até a janela. O vidro mostrava seu rosto pálido sobreposto ao brilho intenso do sol que também era refletido pelas janelas dos outros prédios. Tudo brilhava. Tudo refletia. Tudo se mostrava.
     Até aquele momento, o menino acreditava que apenas a presença bastaria para traduzir-lhe a alma e que a voz era desnecessária, pois, para ele, ela não passava de uma auto-afirmação de cunho persuasivo. Mas todo aquele brilho, aquele reflexo, aquele grito alaranjado despertou-lhe um grito visceral seguido de algumas lágrimas que lhe lavaram a gola da camisa. Estava rompido o laço que amarrava sua voz.    

Gabriel Lopes Sattelmayer