E ele que não se manifestava,
moldado à talha pela descrença, se surpreendeu ao ver que aquela criança que,
até então só se empenhava em causar desordem na casa, passara a se preocupar em
desobstruir os corredores e os quartos após as tardes de peripécia. Observou
que aquela criança criava naturalmente um ar de maturidade. Não aquela
maturidade presa às normas e os bons costumes que seguem o fluxo dos seus
antecessores, mas sim uma preocupação, um cuidado com os demais que, por um
instante de desatenção, poderiam tropeçar em seus brinquedos machucando a si
mesmos e destruindo algum brinquedo que pudesse ser de sua preferência,
resultado na perda da graça de suas empresas fantasiosas em seus mundos
imaginários. É... Talvez a preocupação daquela criança não fosse só o bem-estar
dos outros, mas uma garantia de seu próprio bem.
Pensava assim o velho homem até o momento
em que, vendo a sua dificuldade de se locomover pela casa, a criança abandonou
seu mundo fantástico para levá-lo para passear no jardim em sua cadeira de
rodas. “Eu lhe incomodo, Sr.?”- disse o garoto. “De certa forma.”-disse o
homem. Sem compreender muito bem a resposta inesperada perguntou: “Causo-lhe
algum mal, Sr.?”. O velho homem sorriu e disse: “De forma alguma.”. E quando o
menino perguntou sobre o motivo do incômodo, o homem disse em seguida: “A tua
forma. Tu és um pirralho de merda”. O garoto não se agüentou e abriu uma
estrondosa gargalhada que ecoou em toda a vizinhança. “Você é um velho
rabugento! Rabugento no jeito de se vestir, rabugento no jeito de falar,
rabugento no jeito de andar... R-A-B-U-G-E-N-T-O” – disse o garoto andando em
círculos em volta da cadeira. “E tu, um pirralho de merda!”- murmurou o velho
homem. Os dois se calaram e o silêncio reinou por toda tarde. Ambos se
observavam e se reconheciam um no outro. Os olhos caídos, o cabelo
encaracolado, a maneira com que coçavam a cabeça, os desvios de atenção, o ar
pensativo, o amor e a paixão por seus mundos. No princípio do fim da tarde o
menino arriscou quebrar o silêncio. “Você não aceita que somos iguais, não é
mesmo?”. “Somos os mesmos, mas nossos mundos divergem”- disse o homem com ar
pensativo. Os raios do sol na face do homem restabeleceram um pouco a sua
juventude. O vento que ecoava na copa das árvores esvoaçou o cabelo de ambos.
“Você é um homem rabugento.” – disse o garoto sorrindo. “Você cresceu... Mas
continua um merda.”. Voltaram para a casa.
Gabriel Lopes
Sattelmayer.
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