sábado, 24 de setembro de 2011

Pólos


     E ele que não se manifestava, moldado à talha pela descrença, se surpreendeu ao ver que aquela criança que, até então só se empenhava em causar desordem na casa, passara a se preocupar em desobstruir os corredores e os quartos após as tardes de peripécia. Observou que aquela criança criava naturalmente um ar de maturidade. Não aquela maturidade presa às normas e os bons costumes que seguem o fluxo dos seus antecessores, mas sim uma preocupação, um cuidado com os demais que, por um instante de desatenção, poderiam tropeçar em seus brinquedos machucando a si mesmos e destruindo algum brinquedo que pudesse ser de sua preferência, resultado na perda da graça de suas empresas fantasiosas em seus mundos imaginários. É... Talvez a preocupação daquela criança não fosse só o bem-estar dos outros, mas uma garantia de seu próprio bem.
     Pensava assim o velho homem até o momento em que, vendo a sua dificuldade de se locomover pela casa, a criança abandonou seu mundo fantástico para levá-lo para passear no jardim em sua cadeira de rodas. “Eu lhe incomodo, Sr.?”- disse o garoto. “De certa forma.”-disse o homem. Sem compreender muito bem a resposta inesperada perguntou: “Causo-lhe algum mal, Sr.?”. O velho homem sorriu e disse: “De forma alguma.”. E quando o menino perguntou sobre o motivo do incômodo, o homem disse em seguida: “A tua forma. Tu és um pirralho de merda”. O garoto não se agüentou e abriu uma estrondosa gargalhada que ecoou em toda a vizinhança. “Você é um velho rabugento! Rabugento no jeito de se vestir, rabugento no jeito de falar, rabugento no jeito de andar... R-A-B-U-G-E-N-T-O” – disse o garoto andando em círculos em volta da cadeira. “E tu, um pirralho de merda!”- murmurou o velho homem. Os dois se calaram e o silêncio reinou por toda tarde. Ambos se observavam e se reconheciam um no outro. Os olhos caídos, o cabelo encaracolado, a maneira com que coçavam a cabeça, os desvios de atenção, o ar pensativo, o amor e a paixão por seus mundos. No princípio do fim da tarde o menino arriscou quebrar o silêncio. “Você não aceita que somos iguais, não é mesmo?”. “Somos os mesmos, mas nossos mundos divergem”- disse o homem com ar pensativo. Os raios do sol na face do homem restabeleceram um pouco a sua juventude. O vento que ecoava na copa das árvores esvoaçou o cabelo de ambos. “Você é um homem rabugento.” – disse o garoto sorrindo. “Você cresceu... Mas continua um merda.”. Voltaram para a casa.


Gabriel Lopes Sattelmayer.
              

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