segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

À nossa contradição


Sentado a beira da janela, dava tragos secos com gosto de sangue. Era noite calma, daquelas que incomodam cigarras. 
O calor, insuportável. 
Pernilongos trombavam no ar em igual desespero. 
O corpo já não se adequava mais dentro do espaço estreito entre a cama e a prateleira, debaixo da janela. Era preciso agir. Era preciso respirar qualquer ar sem fumaça, sentir o gosto de qualquer outra coisa que não o de sangue.
Era preciso estar pronto.
O tempo num frasco espatifado...
A fresta do teto denunciava mais um dia nascendo, tão cedo e tão forte o sol esquentava as paredes. O cheiro do travesseiro denunciava a presença ainda não desfrutada... Despertava a dúvida de uma futura ausência.
Entendia-se bem o recado dado pelo silêncio.
Depois de iniciada, a ação precisava de continuidade.
Partiu como uma bala em direção à porta e travou num estrondo oco que ecoou por toda a casa.Viu-se paralisado pelo medo. Não saía de casa a mais de dez anos. Sobrevivia da caridade de uma de suas ex-mulheres que o fazia por pena e pelo prazer de tê-lo como dependente. O medo aos poucos foi sendo engolindo pela angústia e lentamente a porta começou a ser destrancada. 
Utilizou-se das batidas de seu relógio de pêndulo para contar até três e lançou-se em meio ao caos que estava começando a se formar na rua. O barulho das pessoas e do comércio da pequena cidade era aos seus ouvidos uma demonstração do apocalipse. Rodopiou em meio à calçada procurando a porta de sua casa, mas não a reconheceu. Metamorfoseou-se em bicho arisco e zarpou pra um canto escuro e úmido. Encostou-se a um latão de lixo e se apalpou em busca de cigarros.
Almejava uma continuação menos doída, menos morta. Abriu os olhos calmamente, as batidas disparadas no peito.
Ainda era possível fazer algo.
Não era mais preciso estar pronto.
Nem quebrar o frasco.
Era preciso passar para o outro quarto, encontrar na outra cama um desespero a menos.
Mais nada era preciso...


- Gabriel Lopes; Emily.

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